DestaquesNotícias

Aprendizado como missão: os desafios de um estudante indígena

Compartilhar

Reportagem: Luiza Padovam Vieira

Mais um semestre de aulas se inicia na Universidade Estadual de Campinas. O campus, coberto por folhas secas, dá as boas vindas para os estudantes que chegam de todo o canto do Brasil. Alguns andam em modo marcha-lenta após o período de férias e outros parecem um pouco mais animados, como é o caso do estudante indígena, Yanapa Mehinaku Kuikuro. 

Esta reportagem especial é dedicada a contar, brevemente, a trajetória deste estudante desde sua aprovação no vestibular até hoje, nove meses depois, momento em que muitos outros indígenas se preparam para o processo seletivo 2020.

O período de férias acabou e, após passar três semanas com seus familiares, Jaraky, como gosta de ser chamado, retorna para dar continuidade aos seus estudos. Ele é um dentre os 64 alunos que ingressaram no primeiro vestibular indígena realizado pela Unicamp no ano passado. Ao todo, foram 610 inscritos de diferentes regiões, sendo São Gabriel da Cachoeira –  município localizado no interior do Amazonas, na divisa com a Colômbia e Venezuela – o de maior expressão.

O rapaz de 30 anos hoje está cursando o segundo semestre de Letras e a escolha da carreira, segundo ele, vem do desejo de compartilhar seu conhecimento e ampliar a rede de professores indígenas em aldeias. 
“Letramento era o meu sonho. Eu falava há muito tempo: ‘Eu vou fazer letramento, eu vou fazer letramento, até eu conseguir. Eu queria trabalhar como professor na sala de aula na aldeia, é por isso que eu escolhi esse curso.’” diz Jaraky com um sorriso no rosto.

Dos estudos à aprovação

Um voo, 12 horas de ônibus, 2 horas de carro por uma estrada de terra e 3 horas navegando nas águas do Rio Culuene separam a aldeia Afukuri da cidade de Campinas. Ao todo, são mais de 1.500 km. Canarana, localizada na região norte do Mato Grosso, é a última parada antes de entrar no Território Indígena do Xingu. 

Ao descer do barco, é preciso percorrer um trecho de aproximadamente 100 metros até chegar à aldeia. O sol forte e quente, reforça os avermelhados da terra batida. Não há muito ali; são 19 ocas, distribuídas circularmente em torno da oca central, onde acontecem as reuniões e eventos importantes. O perímetro, cercado por uma extensa mata primária, revela a beleza e diversidade da Floresta Amazônica. 

Mais à esquerda, fora do anel, está uma pequena cabana de madeira, pintada nas cores verde e branca. Próximo à porta, vê-se uma espécie de brasão com a pintura de uma onça, símbolo que representa o povo Kuikuro. É nesse local que as crianças, jovens e adultos indígenas estudam. Jaraky, acompanhado de um dos professores da aldeia, o Ajukuri Kuikuro, nos convida para entrar. Dentro, estão algumas carteiras e cadeiras em relativamente bom estado e uma lousa verde no chão, escorada na parede à frente. Cartolinas e papéis desenhados cobrem as paredes da sala, com traduções do karib – língua local – para o português. 

Duas novas salas foram construídas em março de 2018, porém, a estrutura da escola permanece precária. O pó intenso e os dias de chuva afetam a rotina de professores e alunos. Foto: Carol Brenck

“Essa é a nossa escola. As crianças, jovens, vêm aqui para aprender. Eu ensino os alunos do quinto ano”, diz Ajukuri enquanto mostra os trabalhos dos alunos. Sentados ali, conversando, é difícil não pensar nas dificuldades enfrentadas pelos indígenas no que se diz respeito ao acesso à educação. O professor Ajukuri diz que um dos principais desafios é a falta de estrutura. “Ano passado ficamos sem energia e faltou muita coisa para gente. Agora, com as placas solares, ficou mais fácil pra fazer trabalho e para pesquisar palavras que a gente não conhece.” Com a mobilização e esforço conjunto da comunidade, placas solares foram instaladas, permitindo o uso de energia e também da internet durante certos horários do dia.

Cartolinas e papéis desenhados cobrem as paredes da sala, com traduções do karib – língua local – para o português.  Foto: Carol Brenck

Em meio à conversa, Jaraky recebe uma mensagem no seu WhatsApp – plataforma muito utilizada pelos indígenas – e, com um sorriso de orelha a orelha e olhos brilhantes, ele anuncia: “Passei no vestibular da Unicamp! Agora eu estou muito feliz, eu não esperava, eu só fui lá fazer prova. Eu estou muito feliz.” A comemoração, feita aos pulos e gritarias, transbordava felicidade. O sentimento ali era de gratidão, esperança e alegria por ter a oportunidade em aprender e poder repassar o conhecimento para frente. Jaraky poderia agora, se tornar um Kinguheni, ou seja, aquele que sabe ensinar. 

A vida na universidade 

Enquanto caminha pelo gramado em frente ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Jaraky conta que sua maior dificuldade está em se adaptar à língua portuguesa. Segundo ele, o karib é mais fácil, não tem tantas conjugações. “Eu espero que eu aprenda mais daqui pra frente. Estou aqui há dois meses só, então pra mim eu ainda não aprendi. Acho que daqui um ano vou estar melhor.”

Yanapa Mehinaku Kuikuro, mais conhecido como Jaraky, foi um dos poucos estudantes do Alto Xingu que passaram na primeira edição do Vestibular Indígena da Unicamp.
Foto: Roberto Benatti

Durante três dias da semana, ele participa de aulas de reforço de português ministradas por estudantes bolsistas da Unicamp que se disponibilizaram a ajudar. A rotina e ritmo de vida são comuns para a maioria dos parentes. 
“Estou dormindo à uma (01h00) e acordo às seis (06h00). Tomo banho às seis e quarenta (06h40) e sete e meia (07h30 ) pego o ônibus para chegar na aula em ponto”. Das sete aulas cursadas no primeiro semestre, Jaraky terá que refazer as matérias de Latim, Letramento e Seminário de Ensino de Língua Portuguesa. Essa realidade é comum para muitos estudantes indígenas que, assim como ele, sentem dificuldades em se adaptar ao currículo universitário. 

Jaraky está cursando o segundo semestre de Letras e conta com a ajuda de estudantes bolsistas que se voluntariaram a ajudar os alunos indígenas. Foto: Felipe Martins

Segundo a pró-reitora de graduação da Unicamp, professora Eliana Amaral, já era esperado que houvesse uma barreira de aprendizagem, porém a universidade não sabia dimensionar o real cenário até a chegada dos alunos. Oralidade, leitura e interpretação foram os principais pontos detectados, assim como noções básicas de matemática em contas de soma e divisão.  

Amaral diz que a universidade está trabalhando para identificar as reais necessidades dos alunos através de entrevistas individuais realizadas com o apoio do serviço social e orientação educacional. “A nossa preocupação é que eles precisam ter sucesso acadêmico. Com o desprendimento e dedicação de alguns professores, nós montamos alguns programas de suporte particular principalmente em matemática e português.”

Adaptação cultural 

A oportunidade de estudar em universidades públicas e federais como a Unicamp, UFG e UnB é o que leva muitos estudantes, das mais remotas partes do Brasil, a deixarem suas casas para enfrentar os desafios que, no caso dos indígenas, são complexos e multilaterais, a começar pela diversidade e pluralidade dos povos originários brasileiros. 

De acordo com dados do censo do IBGE realizado em 2010, há mais de 800 mil indígenas de 305 etnias e que falam 274 línguas distintas. Cada povo tem, na teoria, autonomia própria sobre seus costumes, crenças, práticas e funcionamentos que os diferenciam e os caracterizam, mas na prática a realidade é outra. Quem explica isso é o professor inter-étnico, Douglas Floresta.

Antes de iniciar seu trabalho na aldeia Afukuri (MT) em 2016, Floresta trabalhou com resgate e reabilitação de fauna silvestre na Associação Mata Ciliar, em Jundiaí. Há três anos, o jovem de 28 anos, nascido em Votorantim, dedica sua vida a educação de jovens e adultos da aldeia. Além da estrutura precária, Floresta destaca o despreparo do estado desde a capacitação de profissionais até a produção de materiais didáticos específicos.

“Quando eu pego por exemplo um livro do ensino médio, todo aquele conteúdo que está no livro, ele não cabe, não funciona. A linguagem daqueles textos é outra. Os conteúdos, as imagens, estão muito além da realidade deles, de algumas realidades indígenas.” Para ele, falta ao estado uma gestão séria das escolas indígenas e uma relação mais próxima com os líderes, professores e estudantes a fim de compreender o que essas comunidades acreditam que seria adequado para eles; respeitando suas práticas e o seu tempo de existência, de aprendizado. 

De forma correlata, as dificuldades acadêmicas também existem. Eliana Amaral aponta que, o maior desafio é lidar com as diferenças culturais e particularidades de cada etnia. “Apesar de eles conhecerem nossos hábitos e terem adotado uma série deles, o modo de operar como sociedade é diferente. O problema é que eles são diferentes etnias, então eles também não são uníssonos, assim como nós não somos. Isso ficou muito claro quando eles chegaram, eles nos disseram isso com bastante clareza”.

“A nossa maneira de lidar com esse gap é oferecer cursos de suporte, mas nós não temos outra forma de fazer no momento. Existem sugestões, como o PROFIS. É um curso de formação geral, com duração de dois anos, com competências gerais acadêmico universitárias nas três áreas do conhecimento. No mundo ideal, os indígenas deveriam passar pelo PROFIS. É uma ideia a ser amadurecida, mas tem um custo”, relata a pró-reitora.

Estudantes da aldeia Afukuri durante aula ministrada pelo professor Douglas Pereira.
Foto: Arquivo pessoal/Douglas Pereira

Ao falar sobre sua vida na cidade, Jaraky aponta a questão financeira como uma das mais difíceis. “Na cidade a gente só fica com dinheiro, sem dinheiro você não consegue ficar aqui. É diferente da aldeia; na aldeia você come sem pagar nada, tem tudo na natureza. Quando você fica com fome você tem que ir lá pescar, pegar as frutas nativas.”

Hoje, ele mora nos estúdios – residências específicas para famílias – com sua esposa e quatro filhos e recebe, mensalmente, um auxílio de R$ 897,00 para custos de transporte e alimentação. Parte deste valor é oriunda da BAS, Bolsa Auxílio-Social, promovida pelo Serviço de Apoio ao Estudante (SAE) e destinada a alunos de graduação que, em troca, realizam 10 horas de atividades semanais em projetos dentro de diversas áreas da universidade. Jaraky optou pelo projeto “Contação de Histórias e Artes Indígenas” para as crianças da DEdIC, espaço educativo para filhos e filhas de estudantes e funcionários.

Diferente de outras universidades brasileiras que possuem o Programa de Bolsa Permanência (BPB), como a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal de São Carlos (UFScar), a Unicamp destina ¼ do seu orçamento para recursos de permanência e custeio para estudantes com Renda Per Capta inferior a um salário mínimo e meio. 

Além dos estudos, Jaraky dedica 10 horas semanais ao projeto “Contação de Histórias e Artes Indígenas ” para as crianças da DEdIC. Foto: Felipe Martins

Além das ações institucionais, alguns docentes, alunos e membros da comunidade mantém um suporte permanente e solidário aos estudantes indígenas. Uma das ações realizadas, são rodas de conversas no Espaço Cultural Casa do Lago, localizado dentro do próprio campus da Unicamp.  Os encontros são abertos e visam abordar temas como saúde preventiva – física e mental -, autonomia e machismo. 

Zilda Oliveira de Farias, conhecida como Dida, foi a responsável pela organização do bate-papo. A professora pedagoga, filha de nordestinos e descendente indígena do povo Kariri-Xocó, já acolheu diversas famílias em sua casa e é membro ativo na luta pelos direitos indígenas. Ela acredita que o debate horizontal e circular é essencial no processo de interação e adaptação deste grupo na sociedade ocidental. “É uma troca benéfica de experiências, saberes e cultura, uma troca necessária e possível.”

Olhando para o futuro 

Na primeira edição do vestibular indígena, realizado em 2018, a prova foi composta de questões de múltipla escolha e uma redação, e foi elaborada de maneira contextualizada, condizente com as realidades encontradas pelos estudantes indígenas. Porém, ao mesmo tempo que a prova tem caráter inclusivo e segue a política de diversidade e pluralidade defendida pela universidade, há uma disparidade em termos de preparo e conhecimento quando esses alunos ingressam no mundo acadêmico.

Para Floresta, a iniciativa da universidade é louvável, mas há muitos pontos a serem melhorados. “Neste último final de semana, ajudei os alunos aqui da aldeia e de outras aldeias que vieram me procurar, a se inscreverem para o vestibular. No questionário sociocultural da Unicamp, tem muita coisa que eles precisam se atentar. Por exemplo: “Quantos quartos têm na sua casa?” Todos eles responderam: – Não, na minha casa não tem quarto, é uma oca.”, “Sua casa tem banheiro?” – Mas o banheiro é o mato. “Tem rua pavimentada?” Eles precisam lembrar que existem indígenas em contexto de cidade, aldeia, aldeia urbanizada e em contexto de floresta, e que são realidades bem diferentes uma da outra.”

Professor Douglas Floresta na beira do Rio Culuene durante a aula de conscientização ambiental. Foto: Arquivo pessoal/Douglas Pereira

Outro ponto, é a questão da distância. Os locais das provas são realizados em cidades muito distantes de onde alguns indígenas vivem, dificultando a participação dos mesmos nos vestibulares. No ano passado, Floresta organizou uma rifa e contou com a ajuda de amigos e familiares para custear as passagens do Jaraky e de outro estudante da aldeia até Campinas. Essa disparidade encontrada, fomentou uma reflexão entre docentes, coordenadores e diretores sobre qual o próximo passo a ser dado e de que forma ele deverá ser feito.

A Unicamp reconhece que está em processo de aprendizado e adaptação, identificando os pontos a serem aperfeiçoados e até modificados para manter os atuais alunos e receber futuros grupos. Entende também que, para promover o sucesso acadêmico e integração dos indígenas na vida universitária, a instituição precisa da ajuda e mobilização voluntária da comunidade para atender todas as demandas existentes. Na edição deste ano, o vestibular será aplicado nas cidades de Campinas, Caruaru, Bauru, Dourados, São Gabriel da Cachoeira e Tabatinga, e as vagas passaram de 72 para 96.  As inscrições tiveram início no dia 2 de setembro e vão até dia 30 de setembro no site da Comvest. 

Mapa destaca as cidades onde será aplicado o Vestibular Indígena

A outra novidade é a inserção de sete novos cursos na edição de 2020. Com base em conversas com estudantes e lideranças indígenas, a universidade entendeu a necessidade de oferecer formações que estejam mais relacionados aos interesses dessa comunidade. Os cursos são: Ciências Biológicas (integral e noturno), Educação Física (integral e noturno), Engenharia de Alimentos (integral e noturno), Engenharia de Telecomunicações (integral), Engenharia de Transportes (noturno), Sistemas de Informação (integral) e Tecnologia em Análise e Desenvolvimento de Sistemas (noturno).

Apesar de todos desafios, Amaral é positiva e acredita na proposta oferecida pela Unicamp. “A pró-reitoria tem como obrigação tentar identificar e oferecer a oportunidade de chegar à Unicamp os alunos que irão se beneficiar dessa experiência, mas a missão dela é que esses alunos passem aqui e saiam, e que essa experiência seja modificadora do mundo”.

Para Jaraky, esta oportunidade já tem sido transformadora. Vendo o aprendizado como uma missão, ele espera no futuro realizar o sonho de se tornar um professor e ajudar o seu povo. “Quando eu me formar eu vou fazer prova de linguística para fazer um mestrado. Eu quero continuar, não quero parar.”

Álvaro da Silva Júnior

Jornalista, Fotógrafo e profissional de Marketing e Comunicação Integrada.

Deixe um comentário